“HAVIAM" COISAS
Felipe Pinheiro, meu
saudoso amigo, costumava fazer uma brincadeira que adoro repetir sobre a
epidemia do “pra mim fazer”. Quando um “pra mim andar” ou “pra mim comer” lhe
feria os ouvidos, meu compadre franzia as sobrancelhas e repetia, entre o
irritado e o desesperado: “Mim não faz nada! Mim não anda! Mim não come! Mim não faz coisa nenhuma!”.
Existem infindáveis
“mins” realizando façanhas por aí, com o risco, inclusive, de ser aceitos pela
norma culta. Se os que defendem que a linguagem já nasce com o homem estiverem
corretos, e o neném berrar na sala de parto seguindo a concordância, o “pra mim
errar” deve ser um defeito grave de fabricação.
Meu mim
não age. É dos poucos orgulhos que eu tenho do meu português. Tenho um
conhecimento pífio de gramática, escrevo de ouvido, herança da escola
experimental. Passei anos com medo de desejar um bom-dia por escrito ao João
Ubaldo Ribeiro. “Será que tem hífen?”, eu pensava. Um bloqueio assustador, como
se estivesse prestando um exame. Só usava frases curtas, quase bilhetes e,
mesmo assim, no sufoco.
Recentemente, eu me correspondi com um
conterrâneo do Ubaldo igualmente culto e amante da última flor do Lácio. Fui
bem, consegui desenvolver um raciocínio aceitável, mas, lá no fim do último
parágrafo da caudalosa epístola, escrevi que “haviam incongruências”. As
incongruências não importam, já o haviam…
“No Brasil, usamos o verbo ter no lugar do haver. ‘Tem um
buraco enorme do lado esquerdo.’ Pois bem, mesmo que fossem dois (ou sete)
buracos, o verbo permaneceria no singular: ‘tem sete buracos enormes do lado
esquerdo’. Igual a ‘há sete buracos enormes do lado esquerdo’. Até aí, tudo
bem, ninguém erra se usar o verbo haver: ninguém diz ‘hão sete buracos
enormes’. Mas, se vai para o passado, neguinho fica com medo de não fazer a
concordância e flexiona o verbo: ‘haviam sete buracos’. O certo é ‘havia sete buracos’.
Nem ‘houveram sete assaltos’ (saí do buraco porque não dá para fazer uma frase
convincente com buracos e o verbo no pretérito perfeito: houve, houveram; o
imperfeito é havia, haviam).
O certo é ‘houve sete assaltos’. Ou ‘teve sete assaltos’.
Claro que com o verbo ter você vai encontrar situações de flexão correta: ‘Os
bancos tiveram sete assaltos este mês’. Porque aí o sujeito da frase é ‘os
bancos’. É como dizer ‘os bancos sofreram sete assaltos’. Mas dizer que
meramente houve assaltos não implica ‘assaltos’ ser o sujeito. Houve o que
houve, há o que há, havia o que havia; o verbo haver aí é impessoal. O verbo
ter, quando o substitui em casos iguais, também.”
Agradeci
de joelhos a paciência e a aula, mas o lodaçal piorou. E existe? Existem sete
buracos? Ou existe sete buracos? Quem existe é o buraco, então, deve ser
existem. E os dias? “Hoje é 15 de setembro”? Ou “são 15”? As horas eu sei que
são. E faz? É impessoal ou não? “Fazem quinze anos” ou “faz quinze anos”? É
faz. A razão, segundo fui informada, beira a filosofia: é porque o tempo é.
O pediatra do meu filho tinha 14 anos quando enfrentou
uma sequência de zeros distribuída democraticamente pelo professor belga de
matemática do Santo Inácio. O pai recorreu a aulas particulares com um
conterrâneo do mestre. O europeu mal-humorado explicou que só existem quatro
operações relevantes: soma, subtração, multiplicação e divisão, depois,
escreveu na lousa: 2+2, 2-2, 2×2 e 2:2 e pediu que o aluno resolvesse. Quando o
rapaz terminou, o professor aconselhou um reforço em português. A dificuldade
estava na leitura do enunciado dos problemas. Todas as falhas de compreensão
pertenciam à lógica.
Nesse
quesito, português só perde para a física em matéria de dificuldade.
O pouco que fixei, hoje, só me serve para entregar a
idade.
A última reforma ortográfica dizimou os
acentos. O computador conserta, mas eu redigito o agudo do “o” de “jóia” e
“clarabóia”. Não aguento “joia” e “claraboia”. Vôo, também, não tem mais
circunflexo, virou “voo”. E não se distingue mais “história” de “estória”, uma
sutileza que me agradava imenso.
Depois de tanta ignorância confessa, só não peço demissão
por medo de redigir a carta.
Por
Fernanda Torres.
Crônica
publicada em junho/2012 na revista Veja Rio.
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