sábado, 9 de junho de 2012


Quando a crase muda o sentido
Muitos deixariam de ver a crase como bicho-papão se pensassem nela como uma ferramenta para evitar ambiguidade nas frases


O emprego da crase costuma desconcertar muita gente. A ponto de ter gerado um balaio de frases inflamadas ou espirituosas de uma turma renomada. O poeta Ferreira Gullar, por exemplo, é autor da sentença "A crase não foi feita para humilhar ninguém", marco da tolerância gramatical ao acento gráfico. O escritor Moacyr Scliar discorda, em uma deliciosa crônica "Tropeçando nos acentos", e afirma que a crase foi feita, sim, para humilhar as pessoas; e o humorista Millôr Fernandes, de forma irônica e jocosa, é taxativo: "ela não existe no Brasil".



O assunto é tão candente que, em 2005, o deputado João Herrmann Neto, que morreu em abril deste ano aos 63 anos, propôs abolir esse acento do português do Brasil por meio do projeto de lei 5.154, pois o considerava "sinal obsoleto, que o povo já fez morrer". Bombardeado, na ocasião, por gramáticos e linguistas que o acusavam de querer abolir um fato sintático como quem revoga a lei da gravidade, Herrmann Neto logo desistiu do projeto.


O acento grave (`) no a tem duas aplicações distintas, explica Celso Pedro Luft (1921-1995) no hoje clássico Decifrando a Crase (Globo, 2005: 16):

1) Sinalizar uma fusão (a crase): indica que o a vale por dois (à = a a): "Dilma Rousseff compareceu às CPIs".
2) Evitar ambiguidade: sinaliza a preposição a em expressões de circunstância com substantivo feminino singular, indicando que não se deve confundi-la com o artigo a . "Dilma Rousseff depôs à CPI". Sem a crase, a frase hipotética se revela ambígua: Dilma destituiu a comissão parlamentar de inquérito ou apenas deu depoimento à comissão? O sinal de crase tira a dúvida.

Sinalizar a contração entre vogais idênticas (no caso, a preposição a e o artigo a ) é um desafio que, mesmo quando parece complicado, pode ser intuído pelo usuário do idioma, em regras relativamente simples de ser incorporadas.

Ambiguidade 
A grande utilidade do acento de crase no a , entretanto, que faz com que seja descabida a proposta de sua extinção por decreto ou falta de uso, é a assinalada por Luft: crase é, antes de mais nada, um imperativo de clareza.

Muitas frases em que a preposição indica uma circunstância (instrumento, meio etc.), em sequências do tipo "preposição a + substantivo feminino singular", podem dificultar a interpretação por parte de um leitor ou ouvinte. Não raro, a ambiguidade se dissolve com a crase - em outras, só o contexto resolve o impasse. 

Exemplos de casos em que a crase retira a dúvida de sentido de uma frase, lembrados por Luft em Decifrando a Crase : 

Cheirar a gasolina (aspirar)Xcheirar à gasolina (feder a). 
 A moça correu as cortinas (percorrer) X A moça correu às cortinas. (seguiu em direção a).
O homem pinta a máquina (usa pincel nela) X O homem pinta à máquina (usa uma máquina para pintar).
Referia-se a outra mulher (conversava com ela) X Referia-se à outra mulher (falava dela).

Contexto 
O contexto até se encarregaria, diz o autor, de esclarecer a mensagem em casos como: "vimos a cidade"; "viemos a cidade". "conserto a máquina"; "escrevo a máquina". Um usuário do idioma mais atento intui um acento necessário, garantido pelo contexto em que a mensagem se insere, se a finada testemunha do exemplo a seguir destituiu a relatora da OAB ou prestou depoimento: 
Morta a testemunha que depôs a relatora da OAB.

Mas, em geral, contextos elípticos ainda deixariam dúvidas em exemplos do tipo: "Fique a vontade onde está" ou "A sombra das raparigas em flor".

  Cheirar a gasolina                                                   Cheirar à gasolina 
(aspirar o combustível)                                      (feder tal qual o combústivel)
                      

"Fique a vontade onde está" indica que uma entidade metafísica chamada "vontade" deve se manter suspensa ou que o interlocutor da mensagem deve se sentir confortável?

A falta de clareza, por vezes, ocorre na fala, não tanto na escrita. Exemplos de dúvida fonética, sugeridos por Francisco Platão Savioli, professor e coordenador de gramática e texto no Anglo Vestibulares:

- "A noite chegou." Na linguagem falada há ambiguidade; na escrita, com ou sem o acento, não. Alguém chegou à noite, ao escurecer? Ou foi a noite que chegou no fim da tarde? Como saber o sentido de uma frase como essa, sem o acento?

- "Ela cheira a rosa." A afirmação será ambígua, se oral. Se escrita, terá sentidos diferentes, se houver o acento grave no a que precede "rosa" ou se ele for dispensado. "Ela cheira a rosa" significa que a dama aspira o perfume da rosa. Já "ela cheira à rosa" indica que a princesa tem o perfume da flor. Na escrita, com a crase, nem é preciso explicar ou entender o contexto.

- "Matar alguém à fome." Sem acento, alguém mata a própria fome. Com, mata-se alguém pela fome. Como na África ou em ásperas periferias brasileiras.

Sem o sinal diacrítico, construções como essas serão sempre ambíguas. Nesse sentido, a crase pode ser antes um problema de leitura do que prioritariamente de escrita.


Em expressões com palavras femininas (expressões adverbiais, conjuntivas e prepositivas), há o acento grave de clareza, utilizado por tradição: "às vezes", "à moda de", "à espera", "à medida que", "à custa de", "à prova de" etc.



Embora com expressões adverbiais de instrumento o emprego do acento da crase seja desaconselhado pelos gramáticos, seu uso é frequente no português brasileiro, mesmo quando desnecessário: Escrever a máquina, a mão, a tinta, a caneta (a lápis); ferir a faca (a cacete); calar a bala (a tiro), matar a baioneta (a punhal). Acentua-se, se houver confusão de sentido. Alguém matará uma baioneta? Coisa difícil. Quem aplica o sinal intui um chamado da mensagem ao uso do acento grave de clareza. "Produzir a máquina" será fabricar a máquina ou produzir com a máquina? Então: "Produzir à máquina". Por isso, "pintar a mão" será pintar, desenhar na própria mão, como amantes de tatuagens? Ou pintar com a mão, sem instrumentos, como fazem alguns sensitivos? Então: "Pintar à mão".


Mesmo a regra da crase como índice de contração com "distância" tem sido interpretada pelos usuários do idioma como dependente do contexto.
Pela regra tradicional, não há acento, se a "distância" estiver indeterminada:

"Ficar a distância". "Seguiu-a a distância". "Manteve-se a distância segura". Se a "distância" estiver definida, determinada numericamente, há acento:"Ficou à distância de dois metros" . "Viu o corpo à distância de três passos".



Influência 
Há, no entanto, autores que sempre acentuam o a dessa locução. Não por acaso, dicionários como Houaiss incorporam as diferenças de sentido que os usuários da língua tendem a sentir ao usar a locução.

No sentido de "de longe" e "de um ponto distante", muitos brasileiros sentem que faz sentido usar crase. Exemplo de Houaiss: "a sentinela vigia à distância. Entende-se "à distância" como "localizado a (certa) distância; distante, afastado". No sentido de "ao longe" e "em um ponto distante" não se sentiria a necessidade da crase: "viram algo movendo-se a distância". 

O que os usuários intuem do sentido implícito à frase parece influir, por exemplo, no uso da crase com nome próprio feminino, o que torna o acento muitas vezes optativo: "Fizeram uma homenagem à Maria" revela mais intimidade do que "Fizeram uma homenagem a Maria".

Assim também "desenhei a caneta" x "desenhei à caneta"; "a polícia recebeu a bala" x "a polícia recebeu à bala"; "dar à luz" x "dar a luz".
Expressões 

Em crase, a intuição e a generalização de exemplos concretos podem ser mais efetivas que a decoreba de regras. 

Se intuímos a regra básica de que só se usa crase diante de palavras femininas quando há uma preposição seguida de um artigo, evitamos ocorrências como "à 80 km", "à correr" ou "à Pedro". Afinal, nunca pensamos em crase com palavras masculinas ou verbos: daí não haver em "a lápis", "a contragosto", "a custo". 

Se lembramos que a crase serve para eliminar uma ambiguidade, também evitamos tirar a crase em contextos que pedem, por exemplo, "à beira", "à boca miúda", "à caça". Assim, fica muito mais fácil pensar a crase. 

Por: Luiz Costa Pereira Junior, com a colaboração de João Jonas Veiga Sobral.
Fonte: Revista Língua Portuguesa, nov. de 2009.








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