Começo com duas passagens de uma coluna de Maierovitch publicada no Terramagazine (aqui ao lado, no dia 30/05), comentando o episódio Lula – Gilmar Mandes – Jobim. Não vou discutir o affaire, embora tenha opinião sobre ele (uma parte dela é que posso acreditar ou não em Lula e Jobim, conforme o caso. Em Gilmar Mendes, nunca).
Entre outras coisas, Maierovich, que é um senhor culto (mas também vítima de certa mentalidade em relação à língua, como espero mostrar), escreveu:  
“Segundo Mendes declarou à revista Veja e confirmou em entrevistas, Lula teria ofertado-lhe “blindagem” na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que apura o escândalo Cachoeira-Demóstenes-Delta”.  
“… “Mensalão”, que Mendes sustenta haver Lula pedido-lhe para adiar, já foi objeto de sessões administrativas (com participação de Mendes) quando se acertou até o tempo para manifestação das partes (Maierovitch, Terra, 19/05/2012).  
Chamaram minha atenção as duas ocorrências de ênclise, completamente fora do padrão: ofertado-lhe e pedido-lhe. São exemplos quase extremos de hipercorreção. Explico.  
Hipercorreção é um fenômeno que se caracteriza pela correção excessiva, ou melhor, aplicada a contextos em que não cabe. As razões para corrigir algo podem ser diversas. Em geral, têm a ver com optar por uma forma socialmente valorizada.  
Os exemplos mais claros, no campo das línguas, são do tipo dizer “telha” por “teia” (de aranha), já que se descobriu que a “teia” que cobre a casa é “telha” e não “teia”. É, portanto, um tipo de generalização, que consiste em aplicar mais ou menos cegamente a mesma regra a todos os contextos iguais ou semelhantes: se uma “pia” é “pilha” e se uma “fia” e “filha”, então todas devem ser. É por isso que se acaba falando, querendo acertar, da “pilha branca” do banheiro. Um dos melhores casos eu ouvi da boca de um pedreiro, que sugeriu colocar “vitror” num certo lugar da casa. O raciocínio dele é óbvio: se “dotô” é “do(u)tor”, então “vitrô” é “vitror”.  
É o que explica as ênclises acima. O português do Brasil, como se sabe, é basicamente proclítico: “me dá um dinheiro, me parece que” etc. Em Portugal diz-se (aqui se diz) predominantemente “dê-me, parece-me”; fala-se assim desde criancinha.
A gramática escolar ensina que há casos de próclise (que ME faz chorar), de ênclise (diga-ME) e de mesóclise (ter-LHE-ia ofertado). Mas, principalmente, a escola insiste em eliminar as próclises, que são muito comuns, porque fazem parte de nossa competência de falantes brasileiros. Muitas são consideradas erros. Ensinam-se diversas regras de colocação de pronomes, mas a única que sobra, mais ou menos vaga, é uma simplificação, “o pronome segue o verbo” (ou: pronome antes do verbo é errado).  
O resultado é que a tendência passa a ser colocar todos os pronomes depois do verbo, mesmo em contextos estranhos, como nos trechos acima, em que o pronome está depois de particípio, posição que nunca ocupa, nem em Portugal, nem no Brasil!  
É um efeito da hipercorreção, um dos poucos fenômenos que podem ser qualificados tecnicamente de erros. São generalizações em desacordo com a gramática internalizada da língua, aquela que todos sabemos.  
Por: Sírio Possenti
Fonte: www.terra.com.br